A Meca dos sertanejos

Por Toninho Cury
Matéria publicada no jornal Diário da Região - 25 de Agosto de 1999



Distante 800 quilômetros da capital baiana Salvador, margeando o rio São Francisco, mais conhecido por "Velho Chico", no sertão baiano, é que se localiza o santuário do Bom Jesus da Lapa. Vê-se imponente, um maciço de calcário, de noventa metros de altura, recortado em galerias, grutas e corredores.
De cor negra, o penhasco carrega em si vegetação comum da região castigada pela seca: cactos, bromélias de espinhos e minaretos de formas diversas. Segundo o Dicionário Aurélio, Lapa é "grande pedra ou laje que forma um abrigo". É a maneira mais  clara de entender o nome dado ao local: um abrigo dentro da montanha.
O abrigo foi descoberto em 1691 pelo português Francisco Mendonça Mar, que veio de Salvador, se instalou na Lapa e teve uma vida solitária. De família católica e filho de ourives, chegou ao Brasil com 22 anos, por volta de 1679. Fixou-se me Salvador tendo como profissão pintor e lapidador de pedras e cristais.
Influenciado pelas pregações do padre Antonio Vieira, jesuíta, sobre o Bom Jesus Crucificado, estudou a fundo o Evangelho. Deixou tudo de lado. Das vaidades do mundo aos bens materiais. Doou seus bens aos pobres. Dispensou seus dois escravos vindos consigo de Portugal, optando por uma vida de eremita e peregrino, imitando os passos do Bom Jesus.
O ermitão da Lapa, como ficou conhecido, trazia no peito um crucifixo de madeira. Nas grutas abrigava peregrinos e doentes que por lá passavam. Na bagagem trouxera duas imagens: uma de Cristo crucificado e uma da Mãe da Soledade.
O trabalho bondoso do ermitão ultrapassou as barrancas do rio São Francisco, transformando a Lapa em um lugar de milagres, atraindo a visita de centenas de conversos.
No ano de 1702, a pedido do arcebispo da Bahia, Dom Sebastião Monteiro de Vide, foi a Salvador se preparar para a missão do sacerdócio. Estudou durante três anos e em 1705 foi ordenado padre. Tomado o nome de Francisco da Soledade após a ordenação, voltou à Lapa onde viveu até sua morte no ano de 1722. Seu corpo é guardado em uma gruta chamada "Gruta do Monge".
Assim nascia a povoação ao redor da Lapa, que passou a ser vila Bom Jesus da Lapa em 1890 e cidade em 1923. Hoje, considerada cidade santuária, conta com 53 mil habitantes. O escritor brasileiro Euclides da Cunha em "Os Sertões" reconhece o fenômeno da Lapa e o trabalho bondoso do Monge Francisco Soledade, depois de severas críticas às violências em arraiais da região.
"Um único, talvez", escreve ele, "se destaca sob outro aspecto, o Bom Jesus da Lapa. É a Meca dos Sertanejos (...) abrindo-se na gruta de âmbito caprichoso, semelhando a nave de uma igreja, escassamente aclarada; tendo tendida do teto grandes candelabros de estalactites; prolongando-se em corredores cheios de velhos ossuários antediluvianos; e a lenda emocionante de um monge que ali viveu em companhia de uma onça - tonaram-no objetivo predileto de romarias piedosas convergentes dos longínquos lugares de Sergipe, Piauí e Goiás".
Na virada do milênio, a emoção é a mesma de tempos passados, como narrou Euclides da Cunha. Basta olha o penhasco e caminhar entre os fiéis romeiros.
Além das orações, missas e cânticos, as lendas também são passadas de geração à geração. É o caso da espada do Monge: no ápice do penhasco existe um ferro em forma de espada. Está cravado na rocha a uma altura de 80 metros. Dizem que quando a espada soltar da rocha e cair no solo, será o fim do mundo. Também existe a lenda da serpente, muito bem narrada pelo saudoso folclorista Luís da Câmara Cascudo, em "Lendas brasileiras", Rio de Janeiro, 1945, sob o título "A Serpente Emplumada da Lapa". Escreve ele: "Na gruta há a cova da serpente emplumada, como a que izalcoah mexicana, que sairia para voar e matar a todos. Frei Clemente, dizem, em fins do século XVIII, mandou que rezassem o Ofício de Nossa Senhora. Cada vez que o Ofício fosse rezado, cairia uma pena à serpente. Rezaram tanto que, abrindo-se a gruta, a serpente desaparecera, desplumada e vencida". Por isso é muito comum, antes de entrar na Gruta da Lapa, avistar romeiros rezando o Ofício como prevenção ao ataque da serpente.


Chapéu de palha caracteriza os romeiros



Pesquisa mostra que maioria dos fiéis da Lapa é formada por pequenos lavradores que não cursaram sequer o primeiro grau e que vem de famílias numerosas.

A figura dos romeiros é caracterizada pelo chapéu de palha revestido rusticamente de tecido branco e fitas coloridas. A mais comum é a de cor verde que simboliza esperança. Se vê muitos chapéus com fitas azuis e outros mesclados em várias cores. Um fato pitoresco na cidade é que todo telefone público (orelhão) é em forma de chapéu de romeiro.
Os romeiros são de todas as partes do país. Os do sul da Bahia são transportados em caminhões tipo "pau-de-arara", alojando-se às margens do Rio São Francisco. Os caminhões chegam a transportar até 80 romeiros. Dormem em redes, usam a água do rio para se banhar, cozinhar e lavar suas roupas. Muitos são transportados em ônibus de prefeituras ou locados diretamente de donos ou agências de turismo.
Os Missionários Redentoristas responsáveis pelo Santuário, divulgaram no ano passado, uma pesquisa dando um perfil dos romeiros da Lapa. Diz o seguinte: "A maioria dos romeiros é de pequenos lavradores (50%), outros trabalham como vaqueiros, empregados de fazendas, pescadores, motoristas, caminhoneiros, donas de casa, aposentados, pequenos comerciantes, etc.; cerca de 25% são desempregados. Por pertencerem à classe pobre, principalmente da roça, sofrem consequência negativa no campo educacional. O universo dos entrevistados é o seguinte: 44% não teve sequer a possibilidade de ingressar em uma escola primária; 21% apenas começou o estudo primário, mas não concluiu; 28% completou o primeiro grau e somente 7% teve condições de completar o segundo grau. Não se encontram pessoas com nível superior de ensino. Vale acrescentar ainda que os romeiros são de família numerosas, com precárias condições de saúde, em alguns casos sem nenhuma assistência médica".
Vale a penas conhecer o Bom Jesus da Lapa, no sertão baiano. Só que o turista tem que estar preparado para a falta de estrutura existente na cidade, como a falta d'água, a má limpeza nas ruas, precária assistência médica (só existe um ambulância) e a poeira branca proveniente do calcário.


Autoflagelação ainda existe


A autoflagelação  comum dos anos 50 e 60 ainda existe. É o caso do senhor Feliciano Januário da Silva, 43, de Itamarajú, Bahia, que carregou nas costas, de joelhos e com as palmas das mãos ao solo, uma saca de 61 quilos de cacau da Esplanada ao altar do Bom Jesus. Foram 500 metros de muita emoção e dor.
"Tudo dava errado para mim: serviço, saúde e negócios. Fiz um pedido ao Bom Jesus, prás coisas melhorar. Se prosperasse, traria durante três anos seguidos um saco de cacau nas costas, rastejando. Pagaria as despesas de 60 romeiros de Itamarajú até à Lapa (1.000 quilômetros) e até o fim da vida, traria ao pé do Bom Jesus o cacau, só que nos braços e com a ajuda dos amigos e os 60 romeiros. Hoje sou fazendeiro e o cacau que está aí é de minha propriedade. Sou um homem feliz. Tenho saúde, dinheiro e paz. Faz sete meses que nasceu minha primeira filha. Devo tudo ao Bom Jesus."


Números


Segundo a Polícia Militar e alguns Padres Redentoristas consultados, neste ano, 800 mil romeiros visitaram a Lapa no período entre 1 e 6 de agosto, dia cultuado ao Bom Jesus. Só no dia 6, na missa realizada na Esplanada às 7h30, participaram cerca de 30 mil romeiros. Durante todo o dia, passaram pela Lapa aproximadamente 200 mil romeiros.
Durante todo  o dia 6 de agosto foram celebradas missas, batizados e casamentos, tanto na Esplanada, quanto nas grutas, verdadeiras igrejas naturais. (TC)





Fotojornalista viaja com os romeiros


Antonio José Cury, simplesmente Toninho Cury, é fotojornalista desde 1970.Tem pesquisado através da fotografia manifestações populares em todo o Brasil, nas áreas do folclore, política, choques econômicos e sociais.
Esteve em Bom Jesus da Lapa a convite da romeira dona Leonilda, da cidade de Zacarias, São Paulo. Não pensou duas vezes: convite feito, convite aceito. Partiu no dia 30 de julho e retornou dia 8 de agosto, juntamente com 48 romeiros em um ônibus locado em Penápolis. Foram três dias de viagem e sete dias na Lapa. Ao todo, percorreu aproximadamente 3.000 quilômetros de estrada, mas diz que valeu a pena.
Segundo Toninho, os romeiros, a maior parte gente simples da roça, formaram um família e já no primeiro dia de viagem, os causo e as cantigas relacionados à fé eram coisas comuns no ônibus. "Era uma gente sofrida, sábia e simples e muito divertida. Não deu nem para cansar nos três dias dentro do ônibus."