A festa do Divino

Por Walter do Valle

Matéria publicada no jornal Folha de Rio Preto - 29 de Junho de 2003


Você saberia cozinhar 26 bois para um almoço? O Dorvalino Rodrigues de Palma, sabe. Há dez anos Dorvo pilota a cozinha da Festa do Divino, em São Luiz do Paraitinga, preparando almoço delicioso para  25 mil pessoas que chegam à cidade em romaria, vindos de todos os lados e pontos do país. A festa, uma das mais tradicionais de São Luiz do Paraitinga, começa com o "afogado" no sábado, prossegue com a cavalhada e termina com apresentações de Folia de Reis, Congada, quermesse, missa e procissão, no domingo. O bucólico lugarejo de oito mil habitantes vira uma loucura, hotéis e pousadas superlotados. Antigamente o afogado, principal atração da festa, era cozido num único panelão de ferro de 10 metros de diâmetro por dois de altura, onde cabia a carne de 15 bois picados em nacos do tamanho de um punho fechado. Só que a Festa do Divino cresceu, 15 bois já eram pouco para tanta gente comer de graça. Dorvo aposentou o panelão e passou a cozinhar 30 bois em dez panelas de 300 a 500 litros cada uma, outra de mil litros, mais o reforço de uma "piscina" de folha de flande, para o macarrão. Está dando certo: o afogado que ele preparou no último dia sete foi consumido por 25 mil devotos do Divino em menos de duas horas. Delicioso. O cardápio consiste em quatro pratos básicos: arroz, macarrão com carne, carne com batatas e o "afogado", que é carne com osso, cozida. Nos últimos dez anos Dorvo foi se especializando, aprendeu que o afogado não aceita erro, principalmente no tempero, no tempo de cozimento, na carga de sal. Para que tudo corra bem, o cozinheiro permanece ao redor das panelas, de pé, por 32 horas seguidas, "possuído pelo Divino Espírito Santo", como ele mesmo diz. Comanda a quantidade de carne que cada panela vai receber, a intensidade do fogo à lenha, o tempero, a transferência da carne cozida para outras panelas, a mistura da carne com o macarrão e com a batata até chegar nos pratos e vasilhas dos romeiros e fieis, acotovelados em quilométricas filas.


Carcaças limpas, 26 bois vão para as panelas.


Fazer esse almoço não é fácil: na sexta feira começam a chegar as carcaças de 26 bois. O barracão se transforma num grande frigorífico com setenta quartos de boi pendurados nas laterais e sete açougueiros limpando as carcaças. Pelancas, sebo e cartilagens são depositados num latão, enquanto a serra elétrica vai devorando os ossos das costelas. Seis panelões de 500 litros, lavados e escaldados com água quente, recebem os nacos da carne sem osso, a panela maior, de mil litros, ganha a carne com osso. Voluntários mergulham no trabalho esbanjando alegria, parecem bandos de crianças que saíram para o recreio. José de Almeida, com o machado afiado, vai rachando lenha para alimentar o fogo das panelas. A mão calosa que dá o galeio no machado é a mesma que a noite vai dedilhar o cavaquinho na praça da matriz. Dorvo está na dispensa conferindo mantimentos e temperos: lá estão 160 quilos de  arroz agulhinha, 14 sacos de 60 quilos de batata, 500 quilos de macarrão furadinho, 10 sacos de cebola mais alho, pimenta do reino, cebolinha, galho com folhas de louro, banha de porco, colorau, lasquinhas de não sei o que. Treze mulheres se revezam na tarefa de descascar batatas, alho, cebola e picar cebolinha. As batatas são depositadas na grande caixa de água. De repente encosta a caminhonete e do nada aparece Betão do Orris lombando meio boi, que pendura num gancho. José Eugênio ataca a carcaça, que desaparece em poucos minutos. Foi parar na bateria de panelas. Sitiante, dono da Pousada Caravelas, bem situado economicamente, ele se mistura aos demais e se entrega à tarefa: é a mágica devoção ao Divino. Há muito tempo foi açougueiro, conhece bem o ofício. A seu lado Benedito de Paula Rocha, o Bozó, quer faca: "Não sei trabalhar sem faca". Ele tem caminhão boiadeiro, é fanfarrão, diz que vai tirar o "filé mignon e levar pros meninos". Pura brincadeira. A noite já invadiu São Luiz, a cidade, do outro lado do rio Paraitinga, se entrega aos festejos, rojões explodem, os sinos dobram, o povo está indo à missa noturna que terá banda de música, Congada e Folia de Reis. Alheios à festança os solitários guerreiros do afogado continuam sua lida. Vão atravessar a noite.

 

A comida chega ao povo.


Manhã de sábado, a carne está toda nas panelas, as batatas descascadas, Dorvo manda Bozó acender o fogo. Lascas de lenha e palha de milho são colocadas sob as panelas, quatro delas com 500 litros de água cada uma para abastecer a cozinha. A fumaça invade tudo, Dorvo parece não ligar, percorre o barracão e vai despejando os temperos sobre a carne: sal, cebolinha, salsa, louro, colorau, cebola, e um toque de amor: o tempero industrializado Sazon. A fumaça judia dos fotógrafos e cinegrafistas, olhos lacrimejantes, mas não arredam pé. E surpreendem Dorvo com a pá de madeira erguida deixando escorrer caldo fumegante na palma da mão. O cozinheiro prova, abana a cabeça, parece que está faltando sal. Vai de panela em panela mexendo e provando, adicionando talos, raízes, tempero verde. Os ônibus dos romeiros encostam perto do muro, eles espiam e se espantam com o espetáculo das panelas que soltam fumaça branca e ardida que ameaça cegar. Dorvo não liga para o calor, por anos lidou com o forno-prensa de 3.600 toneladas, da Mecânica Pesada, de Taubaté, sempre lidou com aço derretido, fogo de lenha é fichinha para ele. De repente pega a grande pá de madeira, enfia até o fundo na panela do afogado e pendura na ponta, tentando trazer para a superfície a carne que está no fundo. A tarefa exige auxílio, não é fácil lidar com o panelão que tem sua altura. Alheias ao show, três mulheres cozinham arroz em panelões que cabem 15 quilos de arroz cru por vez. Um reservatório de alumínio, com tampa de panela de pressão, vai guardar o arroz quentinho até a hora de servir. A fornada de carne cozida e temperada está pronta, Dorvo transfere a carne para outro depósito usando engradado de plástico e depois vai até a panela quadrada onde as batatas estão sendo cozidas. Prova o caldo e pede que o ajudante vá buscar alfavaca na horta para reforçar o tempero. O almoço está na fase crítica, Dorvo se agita, vai provando um a um o conteúdo das panelas, ordena que tragam o macarrão que, depois de cozido e temperado com bacon, torresmo e carne de porco, vai para o piscinão. Ali recebe reforço de carne de vaca cozida sem osso. Chega o padre para a benção da comida. Vem com a Folia de Reis e a bandeira do Divino. Logo após, um batalhão de voluntários vai enchendo baldes e servindo o povo. Emocionante a operação que vai saciar a fome de 25 mil pessoas. O sistema funciona como relógio suíço: romeiros bem vestidos, devotos do Divino, chegam com pratos, bacias, baldes e vasilhames de plástico (comprados no camelô) para recolher o almoço. Em fila indiana recebem arroz, carne com batata, macarrão com carne, procuram uma sombra e degustam a comida bendita. O povo da cidade leva o afogado para casa, á o almoço do dia, ninguém cozinhou hoje. O programa Fome Zero, de Lula, é fichinha perto do espetáculo de São Luiz. Às 4 da tarde o movimento ainda é grande, a romaria às panelas vai prosseguir até quando houver comida. "Nunca sobrou nada, nenhuma vez", gaba-se um Dorvo exausto, esgotado, feliz. Ele faz um tímido prato e se esconde num canto. Sentado sobre o calcanhar saboreia o afogado que lhe custou 32 horas de trabalho. Rojões estouram no pátio ao lado anunciando a cavalhada. Dorvo não assiste, sai a pé em direção à sua casa carregando caldeirão com batata, carne e macarrão para a família. Enquanto comem, Dorvo toma banho quente e demorado, seu ritual para dormir o sono dos justos. Ele se deita e um fio de sorriso se esboça sob seu bigode esbranquiçado antes que apague. (WV)