Vó Nira - A guardiã de um legado

Por Walter do Valle e Toninho Cury

Matéria publicada no Jornal Folha de Rio Preto - 1 de Junho de 2003


Ela resiste ao tempo e continua sendo a grande artista e artesã das máscaras do folclore do Vale; o marido Elpídio deixou de legado extraordinária herança musical. Contracenou e foi parceiro e amigo de Mazzaropi, o  maior caipira (e cineasta) do Brasil.

Última dos moicanos, dona Cinira Pereira dos Santos, a Vó Nira, resiste galhardamente ao tempo no mesmo casarão de 200 anos onde nasceu, em 1925, na bucólica São Luiz do Paraitinga, berço e glória de tantos artistas. Quem não conheceu o autor e cineasta Mazzaropi, o maior caipira do Brasil? Ou Renato Teixeira, autor de Romaria? Ou Elpídio dos Santos, autor das trilhas sonoras dos filmes de Mazzaropi, como Casinha Branca, tema das novelas Pantanal e Rei do Gado? Quem nunca ouviu o poema musical Despertar do Sertão, gravado por Cascatinha e Inhana, em 1978? Quem não conhece o grupo Paranga, honra e glória de nossa melhor música regional? São todos de Paraitinga, terrinha no alto da serra entre Taubaté e Ubatuba, 8 mil habitantes e um ícone: Vó Nira! Ela é voz e memória desse paraíso, esposa do saudoso Elpídio dos Santos, amiga de Mazzaropi, mãe de Negão do Paranga, como o pai, músico e compositor de inesgotável talento. Que beleza, aos 78 anos Vó Nira continua como uma rocha, lúcida, brilhante! Parece que o Divino (cuja festa acontece agora, dia 8) lhe garante eternidade. Vive do artesanato e da pintura, é artista ingênua de primeira grandeza, craque na argila e no papel machê. Dele saem máscaras maravilhosas que enfeitam as festas populares do Vale do Paraíba. É da boca dessa mulher que vamos conhecer a história de Elpídio dos Santos, de Mazzaropi e dela própria. Única filha viva de 16 irmãos, passou a vida cuidando deles. ”Éramos pobres, meus pais trabalhavam fora, eu cuidava da casa, lavava, limpava, não tive tempo de estudar. Casei-me com Elpídio, foram sete filhos, dez netos, a rotina se repete. Graças a Deus a escola da vida muito me ensinou, talvez até mais que os livros acadêmicos. Aos poucos fui botando pra fora o talento adormecido. De repente me vi artista, pintava, mexia com argila, depois com papel machê. Até hoje faço arte, não tem como parar. Estou na fase das máscaras de papel machê. São lindas!” O marido também foi artista, e como! Tocava 22 instrumentos, compositor de indiscutível talento. “Um dia, assim de repente, ele fez uma música muito bonita que deu o nome de Você Vai Gostar. Depois virou Casinha Branca na voz de Sérgio Reis, Fafá de Belém, Vanusa e Renato Teixeira. A TV Manchete colocou a música como tema da novela Pantanal. Depois foi a vez da Globo usar a criação do Elpídio no Rei do Gado. Eu gostava muito também do Despertar do Sertão, que está na trilha do filme Jeca e seu filho preto, de 1979, na voz inesquecível da dupla Cascatinha e Inhana, de Rio Preto. Eu autorizei a gravação por se tratar de dupla de fortes raízes. Esse filme abordou tema delicado, o racismo”.

 

O Circo Quadrado


Muito tempo antes disso Elpídio conheceu Mazzaropi. “Ele chegou para fazer um show em Paraitinga, no prédio da velha cadeia, reformado para ser palco de espetáculos. Elpídio foi chamado e dividiram o palco em 1940 durante a temporada. Como Mazzaropi tinha fechado contrato com a rádio Tupy de São Paulo, Elpídio foi junto. Um dia Mazzaropi se mudou para Taubaté porque o pai trabalhava numa fábrica de tecidos, a CTI. Montou o Circo Quadrado, um cercado de pano ao ar livre, tipo curral, com show humorístico e musical ao vivo. Chamou Elpídio e o convidou para participar dos espetáculos. Tempos difíceis aqueles, quando chovia não tinha sessão, Mazzaropi, coitado, sem dinheiro para pagar as dívidas. Elpídio aguentou firme, adorava tocar, cantar, contracenar com o mestre do humor caipira. Fizeram juntos dezenas de filmes, todos com trilha do Elpídio. A Geni Prado no principal papel feminino: Sai da Frente, o primeiro, em 52, Nadando em Dinheiro, Candinho, O Gato da Madame, Fuzileiro do Amor, O Noivo da Girafa, Chico Fumaça, Chofer de Praça, Jeca Tatu, As Aventuras de Pedro Malasartes, Zé do Periquito, Tristeza do Jeca, O Vendedor de Lingüiça, Casinha Pequenina, A Lamparina, Meu Japão Brasileiro e o  Puritano da Rua Augusta. Certo dia Geni Prado brigou com Mazzaropi, aí ele chamou a Lúcia Lambertini para fazer O Corinthiano, em 1967, mas o filme não deu Ibope. No outro, O Jeca e a Freira, já voltou a Geni. Com o Elpídio ele nunca brigou, unidos até a morte (de Elpídio) em Setembro de 1970. Mazzaropi morreria em 1981 (fez mais nove filmes sem Elpídio), mas nesses onze anos continuou freqüentando nossa casa, gostava muito das crianças, todos músicos”. Elpídio sempre foi guerreiro. Trabalhou no extinto Banco do Vale do Paraíba, foi cartorário, jornalista e chefe de chalé do jogo do bicho (no tempo que o jogo era legal). Chegou a dar aulas no Sesc, em São Paulo.

 

A Carrocinha


Em 1955, Vó Nira viajava com o marido a Mairiporã para assistir as filmagens de A Carrocinha, um dos maiores sucessos de Mazzaropi. “Foi muito engraçado. Eu estava grávida do Elpídio, o Pio, meu segundo filho, já falecido. Adorei a história do homem que recolhia os cachorros vadios na rua”. Ela também foi várias vezes à Fazenda Água Santa, em Taubaté (49 km de Paraitinga) onde Mazzaropi rodou a maioria dos filmes. Hoje lá funciona um hotel fazenda. Apesar de encher cinemas e teatros, Mazzaropi era malhado pela crítica dos anos 60. Com o tempo isso foi mudando, sua obra vem sendo revista pelos críticos e as universidades começam a estudá-la. Ele conseguiu de 1958 a 1980 o que hoje parece impossível: criar uma indústria genuinamente brasileira, independente e sem subsídios ou financiamentos. E além de tudo, bem sucedida. Começou como ator de cinema em 1952, depois de oito filmes e oito sucessos, virou produtor, roteirista, diretor e distribuidor, consagrando-se como um dos maiores fenômenos de bilheteria. Tanto sucesso provocou a criação do Museu Mazzaropi, em Taubaté, mantido pelo Instituto Mazzaropi. Quando perguntavam a Mazzaropi o motivo de seu sucesso ele respondia:”Eu falo a língua do meu povo”. Vó Nira continua firme e forte em São Luiz do Paraitinga. E, como Mazzaropi, falando a língua do povo.(WV)